Marcelo Galter

Pirajá, bairro da periferia de Salvador. Lá nasceu e foi criado o pianista, compositor e arranjador Marcelo Galter. 

Seu convívio com a música da comunidade e um bocado de curiosidade pessoal conduziram-no, adolescente, ao estudo formal de piano e teoria. O mergulho na obra de Bach; as transcrições dos improvisos de Parker, Monk, Miles; a graduação em Piano Erudito pela Universidade Federal da Bahia em 2001; as jam sessions soteropolitanas – tudo isso foi solidificando o apuro técnico que mais adiante o permitiria desenvolver uma linguagem musical inaudita.  

Na primeira década deste século, a jornada do instrumentista foi matizada e ampla: apresentação com a Orquestra Sinfônica da Bahia em comemoração aos 20 anos do Grupo Garagem; com a Orquestra Fina Flor acompanhando Hermeto Pascoal; concerto solo no Festival de Música Instrumental da Bahia; trabalhos com a cantora italiana Maria Pia de Vito e o guitarrista Nelson Veras; gravação do DVD Clássica de Daniela Mercury e ingresso na banda da cantora, com quem excursionou por países diversos; turnê nacional acompanhando Elba Ramalho, Roberta Sá, Paula Lima, Margareth Menezes e, mais uma vez, Daniela no show Elas cantam Chico Buarque; apresentação com o contrabaixista norte-americano Stanley Clarke no Phoenix Jazz Festival etc.

Mas, para que pudesse unir bagagem prática e arcabouço teórico numa linguagem pianística propriamente afro-baiana, foram determinantes para Galter as passagens pelo grupo Bahia Black do guitarrista Mou Brasil e pelo Letieres Leite Quinteto, formado em 2010. 

Como é sabido, o maestro Letieres abordou as claves rítmicas de matriz africana de modo revolucionário, nos âmbitos criativo e pedagógico. Galter participou desse movimento. Com o Quinteto realizou concertos e workshops no Brasil e no exterior e, finalmente, em 2019, o disco O enigma Lexeu (lançado pela nossa gravadora Rocinante). Aliás, vale mencionar que no mesmo ano, arregimentado pelo maestro, o pianista integrou a banda de Maria Bethânia no show Claros Breus

Síntese de toda essa inquietude, Bacia do Cobre, lançado em 2021 pela Rocinante, é o primeiro disco autoral de Galter. Escoltado pelo baixo de seu irmão Ldson e pelas percussões de Luizinho do Jêje e Reinaldo Boaventura, ele amalgama nessa Bacia as claves de matriz africana e os “modos de transposição limitada” (escalas sistematizadas em meados do século XX pelo compositor francês Olivier Messiaen no contexto de uma vanguarda pós-tonal). 

Letieres, o mestre, em texto escrito para a contracapa do álbum, não esconde o próprio espanto diante do som do discípulo: “Até onde sei, não há e nem nunca houve o que Marcelo faz”. Ainda observa que “é o piano com sotaques específicos, fazendo uma arte contemporânea ligada umbilicalmente com os sistemas de oralidade e com a metodologia da diáspora.”

Seria difícil que sotaques especificamente afro-baianos não preponderassem no toque do artista, afinal estamos falando de um instrumentista que também foi membro das bandas de Carlinhos Brown, Jau e Margareth Menezes; e de um arranjador que trabalhou com Margareth em Autêntica e Afropop, com o baterista Tito Oliveira em Magiô, e nos espetáculos comemorativos do Centenário de Caymmi, dos quais participaram Daniela, Danilo Caymmi e Virgínia Rodrigues.   

Bacia do Cobre é o nome da área de proteção ambiental situada no Parque São Bartolomeu, em Salvador, onde resta um pouco de Mata Atlântica. O fato de um álbum assim batizado ser esteticamente ultra-contemporâneo e cosmopolita não faz outra coisa senão confirmar a vocação de universalidade dos muitos “regionalismos” do Brasil – neste caso, o baiano.

Marcelo Galter disse ao Caderno 2 do jornal A Tarde: “O meu disco surgiu de um desejo de tocar especificamente com um certo grupo de músicos que admiro muito e que tem concepções bastante originais de sonoridade. São pessoas que possuem vivência musical e que nasceram na mesma origem que a minha, com histórias interligadas. Nossa linguagem e afinidade sonora surgem da nossa raiz e do propósito que temos com a música”.

Tudo isso nos leva a pensar no tanto de futuros que a velha Bahia guarda.

Fotografia: João Atala
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Bacia do Cobre

Marcelo Galter

R010 | setembro 2021